Sunday, October 4, 2009

FAMA PARA TODOS, um texto que merece ser lido e refletido.


por Ana Paula Sousa

Transcrito do original publicado em: http://www.cartacapital.com.br/edicoes/2007/marco/434/fama-para-todos

O jornalista Sérgio Augusto e a filósofa Olgária Matos falam da “escalada da insignificância” que toma o Brasil
Varridas as cinzas carnavalescas, é de se perguntar: por que somos obrigados a saber quem é Luciana Gimenez, rainha da bateria? Por que já ouvimos falar em Preta Gil? E por que, mal saem de cena os famosos que piruetaram em camarotes, trombamos com o par romântico do Big Brother em sites e jornais?
O jornalista Sergio Augusto, lâmina sempre afiada, matou a charada há tempos, ao ver atores globais numa Bienal do Livro. “No antigo Egito, havia pragas terríveis, como ratos e gafanhotos; nós temos as celebridades televisivas. Convidadas, indistintamente, para tudo, até para eventos onde em princípio deveriam se sentir mais deslocadas do que um vegetariano numa churrascaria ou o papa num bacanal, não perdem uma boca-livre, são pragas onipresentes”, escreveu em Assim Rasteja a Humanidade, um dos textos reunidos no livro Penas do Ofício (Agir, 310 págs., R$ 34,90), lançado este ano.
A filósofa Olgária Matos, da Universidade de São Paulo, também se viu às voltas com esse gênero humano ao selecionar os ensaios que comporiam Discretas Esperanças (Nova Alexandria, 208 págs., R$ 34). “A sociedade do espetáculo é a da visibilidade total. Em decorrência do vazio espiritual da sociedade contemporânea, coisas sem nenhuma relevância tomam um espaço enorme. O que é a fama? Na verdade, é a infâmia”, arremata, ao tratar da “escalada da insignificância”.
A celebridade, no dizer de Emily Dickinson, é a “punição do mérito e o castigo do talento”. E sua expansão inquieta, sobretudo, porque atinge até mesmo quem quer manter ouvidos tapados e olhos vendados diante do desfile de ninguéns. Salvo um eremita que viva na caverna de uma reserva ecológica, não há brasileiro que desconheça Daniella Cicarelli e Cia. Surge então a inevitável pergunta: o que fez Daniella para que todos a conheçam?
“A celebritite não tem queda de volume. Ao contrário, é cada vez maior”, atesta Sergio Augusto, que, na coluna que mantém no jornal O Estado de S. Paulo, cunhou o termo “celebritylândia”. Para ele, a mídia é a maior responsável pela “jeca vassalagem” a celebridades.
“Por que a imprensa não pára com isso, por que não diz: ‘Essas pessoas não têm a menor importância, nós é que as valorizamos à exaustão? Deixa essa gente circular em revistas tipo Contigo! e Quem e Caras e vamos falar de gente mais séria, vamos valorizar quem, de fato, faz alguma coisa importante.’ Mas o que se vê é justamente o inverso. Jornais ‘sérios’ sucumbiram a isso. São todos vassalos da indústria cultural, que ganha muito dinheiro com as tais celebridades”, observa Augusto.
Espiando algumas notícias da Quarta-Feira de Cinzas, o jornalista listou fatos fundamentais para os destinos da humanidade. “Deparei com a guerra de lingeries travada entre Ivete Sangalo, Alinne Rosa, Claudia Leitte e Preta Gil, no carnaval de Salvador e soube que ‘Ivete pôs o Gianecchini para rebolar’. A pauta é incrível. Quem é Tatiana Pagung, uma pessoa ou uma bunda? O que faz ela no resto do ano? Carla Perez e Kelly Key ressurgiram das sombras e para lá devem voltar, com Márcia Imperator, outra que, quando alcançar a idade da Fernanda Montenegro, há muito terá deixado de ser uma celebridade. Não foi só a mediocridade que venceu. A cafajestice, também.”
Nesse cozido de irrelevâncias, convém voltar à origem de certos termos que borbulham no caldeirão das celebridades. Fama é o principal deles. A origem da fama, no Ocidente, é a Guerra de Tróia. Aqueles heróis exemplares, na definição de Olgária Matos, eram homens que, por um gesto heróico, se tornavam eternos e, assim, driblavam o esquecimento que a morte acarreta.
“A glória está ligada ao mundo ancestral, guerreiro, que possui toda uma expressão de valores presentes na Ilíada e na Odisséia. A primeira forma do heroísmo e da fama no Ocidente é se tornar digno de ser cantado pelos aedos e rapsodos e, por algum gesto que o tenha destacado do comum dos mortais, não desaparecer do mundo.”
O conceito de fama hoje em voga remonta às décadas de 50 e 60 do século XX. Até a aparição da chamada cultura pop, havia, para além do heroísmo, as figuras ilustres, sempre ligadas a alguma atividade. “Era o grande político, o grande intelectual, o grande artista. Você ainda tinha a idéia do grande. E grandes são aqueles sem os quais o mundo seria incompleto”, esclarece Olgária. Imagine, portanto, o que seria do mundo sem Luciana Gimenez, Adriane Galisteu e Kleber Bamban, ex-Big Brother, digno de menções pelos feitos do último carnaval.
“Essas pessoas que emergem por alguns segundos não permanecem. O problema dessa banalização é que tudo acaba se equivalendo, você não tem mais critério”, diz Olgária. O desejo de sair do anonimato, mesmo que por uma razão deletéria, explica a sujeição a cenas vexaminosas em reality shows como Big Brother ou, ainda mais, no já extinto No Limite. “Aí se mistura a busca pela fama com a busca pela recompensa material. O grande ideal do mundo contemporâneo é uma palavra de ordem vazia: ganhar dinheiro.”
Uma vez que os cifrões caem apenas nos bolsos dos famosos, há de se encontrar outras razões que expliquem o fascínio que essas pessoas exercem sobre parte da sociedade. Voyeurismo, sempre houve. Mas o que faz com que o vídeo em que Cicarelli e o namorado na praia tenha sido um dos mais vistos no mundo?
“O voyeurismo do Big Brother ou o da Cicarelli no YouTube é só o grotesco. Eu saio da banalidade da minha vida e vou ver a banalidade da vida do outro. Querer viver por transferência faz parte de um processo de perda do significado das coisas e de incapacidade de imaginação. É a incapacidade de imaginar a própria vida”, analisa Olgária.
Quando a imaginação desvanece e os sonhos passam a ser construídos pelas imagens que a mídia fornece, o homem se esvazia, sem se dar conta disso. A tevê, com modelos acabados de famílias e vidas, é pródiga nisso. “Quando pensamos no papel que vem sendo exercido pela televisão, vemos que há um genocídio cultural no Brasil. Quando você se identifica com Adriane Galisteu... é complicado. E, em geral, quanto menos educação tem uma pessoa, mais sujeita a essas influências ela está.”
É fato que telenovelas e modelos midiáticos existem mundo afora. O problema, alerta Olgária, é quando esse passa a ser o padrão de organização da sociedade. “Pensar a democracia no Brasil requer refletir, em particular, acerca da esfera pública cultural”, escreve ela em Discretas Esperanças.
Não se trata de condenar a cultura de massa porque ela é de massa. Preocupante é que todas as produções culturais passem a ser impregnadas pelos valores da mídia e da indústria do entretenimento e só exista isso como horizonte cultural “Quando tudo se transforma em divertimento e isso invade também os terrenos que não deveriam ser do divertimento, como a educação, aí você tem verdadeiras catástrofes”, diz Olgária.
Dilui-se assim a formação da sensibilidade, do gosto e do pensamento. Não por acaso, nesse mar de imagens, gentes e fatos irrelevantes, desaparece no horizonte a prática da leitura, como anota Olgária. “Vivemos num mundo em que tudo conspira contra a leitura, que é lenta, concentrada. Ela contraria a aceleração do tempo das mídias, da fama curta, ela é a longo prazo. A educação está invadida pela temporalidade do mercado financeiro, mas, para você aprender a se sentir solicitado por um texto, você precisa vencer resistências. Ler é um aprendizado, não é um dado imediato: você lê e já gosta.”
Augusto também não adere ao cordão “ler, como coçar, é só começar”. O jornalista lembra que não há ser neste mundo que tenha entrado nas trilhas da ficção pelas mãos de William Faulkner. As leituras de qualquer pessoa evoluem “à medida que seu repertório cognitivo consegue se ampliar e se sofisticar”. E, no Brasil, quem tem dinheiro para abrir a carteira numa livraria lê, geralmente, “os best-sellers computados pela Veja”. Quando lê. “A maior parte da humanidade começa lendo chorumelas, toma gosto pelo negócio, e morre lendo chorumelas. Por isso, mas não só por isso, se bem que muito por isso, a humanidade, em vez de caminhar, rasteja”, concluiu no texto de Penas do Ofício.
Se a paciência para a leitura tradicional escasseia, o mesmo não se pode dizer da leitura das pílulas internáuticas, em blogs e sites que existem à farta. É na internet, não por acaso, que se cruzam o desejo pela fama e o voyeurismo tolo. Quando Bruna Surfistinha, a mais famosa “ex-garota de programa” do Brasil, conta sua vida num blog e milhões de pessoas entram nesse blog, não é de espantar que Lucianas, Daniellas e Adrianes ajudem a vender revistas e jornais.
Sergio Augusto conta que, na Inglaterra, a imprensa dedicada aos “chiques e famosos” está sendo chamada de gutter press. Gutter, acorre o dicionário, significa sarjeta. No Brasil, ela continua sendo vista, apenas, como lucrativa.

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